A poética de Miró

22/12/2020

A POÉTICA MARGINAL DE MIRÓ DA MURIBECA: UMA REPRESENTATIVIDADE NEGRA E PERIFÉRICA DA LITERATURA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA

TRAPIÁ FILHO, João de Sá Araújo; FLORÊNCIO, Roberto Remígio. Revista ID on Line, Vol. 14, n. 52. Universidade Federal do Cariri - UFCA, 2020.

RESUMO

O presente estudo procura direcionar olhares sobre a poética de Miró (2016) com temáticas voltadas à ausência dos autores negros e negras no cânone literário brasileiro ainda nos dias atuais. Ocasionada por séculos de histórias negadas ou terceirizadas, que negaram/negam a presença de escritores e poetas afro-brasileiros, a Literatura Brasileira acaba por demonstrar um desfalque na pluralidade cultural do país. A partir dos conceitos sobre Literatura Marginal e Periférica, os estudos abrem discussões utilizando os textos do poeta pernambucano para apresentar resquícios desse racismo estruturado na formação dos estudos literários brasileiros. Os métodos de pesquisa são baseados em revisão literária, em que autores como Ribeiro (2013; 2017) e Bosi (1994), apontam entendimentos sobre os principais conceitos e a interpretação dos textos poéticos oferecem compreensão das críticas sociais construídas pela produção contemporânea de Miró.

Palavras-chave: Literatura Marginal. Poesia brasileira contemporânea. Representatividade.

ABSTRACT

This paper intends to look over Miró's (2016) poetics concerning the absence of black writers in the Brazilian canon, which persists nowadays. Caused by centuries of denied or outsourced History, which denied/deny the presence of Afro-Brazilian poetry and writers, the Brazilian Literature ends up showing a false cultural plurality of the country. From the concepts of Peripheral and Marginal Literature, these studies open discussions using the texts by this writer from Pernambuco to show remnants of this structural racism in the formation of the Brazilian literary studies. The methods of this research are based on literature review, in which authors such as Ribeiro (2013; 2017) and Bosi (1994) point out understandings about the main concepts and the interpretation of the poetic texts offer comprehension of the social criticisms built by Miró's contemporaneous production.

Keywords: Marginal Literature. Contemporary Brazilian poetry. Representativeness.

INTRODUÇÃO

A tentativa de formação de uma identidade nacional adquiriu força com a Proclamação da Independência do Brasil, em 1822. E, seria inquestionável que, após deixar de ser colônia, o novo país aspirasse a uma identidade própria, que a afastasse da apresentada pelo colonizador, pois o esperado de um país independente é uma soberania artística, cultural, identitária. Assim também poderia ter sido no Brasil, no que diz respeito à busca, mas o êxito não foi completo e, até hoje, bastante questionado. Temos, de fato, uma identidade única? Ou, de forma mais coerente, deveríamos levar em conta considerações que afirmam que somos multifacetados, uma mistura de raças, etnias, línguas e culturas, conforme Ribeiro (2013),

Estávamos vivenciando o auge do período do Romantismo na Literatura, o eixo cultural girava entre Inglaterra e França. No Brasil, os poetas arguiam sobre amores impossíveis, paixões platônicas e o alumbramento sobre os elementos da natureza (NICOLA, 2001). Mas, era necessária a criação de um herói, e o mais acertado para fazer frente aos cavaleiros europeus seria o nativo local. No entanto, o índio, nesse período, foi embranquecido, descontextualizado e submetido aos padrões eurocêntricos (BOSI, 1994). A doce e alva Ceci mantém total domínio sobre o forte e impávido Peri, que renuncia sua cultura pelo amor da portuguesa, enquanto Iracema, representante da guerreira tribo tabajara, rende-se ao poder de sedução de Martin e, por ele, definha até a morte.

Coutinho (2004) aponta que o negro, por sua vez, não foi representado como uma parte fundamental para a construção da cultura brasileira. E, se o negro ganhou finalmente representação nacional, foi na poesia de poetas como Castro Alves, já no fim do movimento romântico, o que ficou conhecido como a fase Condoreira, que daria o pontapé para a próxima fase: o Realismo. Portanto, pode-se perceber que, por muito tempo, a identidade negra na construção da sociedade brasileira não foi nem autora nem tema de grande valorização na Literatura do país, pelo menos até o século XX. Certamente, houve autores(as) negros(as) na História do Brasil, como, por exemplo, Luiz Gama, que, segundo Ferreira (2007), foi uma grande representação da literatura brasileira do século XIX. No entanto, levando-se em conta a idade que este país tropical possui e a quantidade de escritores que ele produziu, fica evidente que a diferença na proporção é alarmante, pois

Examinados os manuais - componente significativo dos mecanismos estabelecidos de canonização literária -, verifica-se a quase completa ausência de autores negros, fato que não apenas configura nossa literatura como branca, mas aponta igualmente para critérios críticos pautados por um formalismo de base eurocêntrica que deixa de fora experiências e vozes dissonantes, sob o argumento de não se enquadrarem em determinados padrões de qualidade ou estilos de época (DUARTE, 2013, p. 146).

A valoração e a qualificação dos trabalhos considerados cânones da literatura eram fundamentadas em princípios que convergiam para a manutenção do privilégio existente. Ao ditar a forma "certa" de se fazer e privar o outro de fazê-la, consequentemente, a perpetuação do poder acontece. Se o homem branco criava literatura achando que poderia representar todas as vozes existentes, a teoria e a prática ficavam submetidas aos seus critérios e valores subjetivos. Não se podia dar ao outro o direito de falar, pois, falar é existir. Como afirma Ribeiro (2017, p. 70), "ao promover uma multiplicidade de vozes, o que se quer, acima de tudo, é quebrar com o discurso autorizado e único, que se pretende universal". E, falando, esse outro, agora, assumiria o discurso e ameaçaria os valores vigentes, pois tal hierarquização conferiu ao pensamento ocidental que a epistemologia eurocêntrica era verdade superior, o que tirava visibilidade de outras experiências. Portanto, as questões que se davam em torno da literatura, durante muito tempo, não eram se determinadas personagens femininas ou negras lançavam novos discursos, e sim se elas pertenciam ou não a obras de estilos específicos de época, como, por exemplo, ao Barroco, ao Arcadismo, ao Romantismo, segundo Bosi (1994). Ou seja, importava mais o período literário do que o discurso em torno delas. Graças a isso, os discursos negros, femininos ou de outras categorias que não fossem padrões, estariam sempre em situação marginal, periférica e subcategorizada.

O objetivo-geral deste estudo é compreender a importância da fala de autores negros na construção da Literatura Brasileira Contemporânea, analisando traços do que se convencionou chamar de Literatura Marginal, abrindo novas discussões sobre essa nomenclatura. Para isso, utilizaremos textos do poeta pernambucano Miró, que desafia não só o modelo de produção de livros, quando faz vendas de livros exclusivos nas publicações de suas redes sociais, como também, ao apresentar a expressão do cotidiano como recurso linguístico e temático, descentraliza o conceito de poesia imposto pelo tradicionalismo. Além disso, na sua construção socioliterária, é possível perceber o exercício da representatividade, do lugar de fala.

Assim, levando-se em conta a grande problemática que envolve a literatura negra/afro-brasileira e o lugar de fala defendido por Ribeiro (2017), e reconhecendo a importância de tal debate, este estudo surge com a intenção de lançar mais um olhar sobre essa problemática, visto que a pluralidade e a grandiosidade do tema não permitem seu esgotamento. Para isso, o ponto de partida é uma análise sobre como os poemas Notícia de última hora; Finalmente, aonde é que amos parar; e Fato isolado uma ova, de Miró, representam a importância do autor negro na apropriação do espaço de fala sobre problemas que refletem o racismo no Brasil.

É importante ressaltar que o problema que diz respeito à diferença conceitual entre literatura negra e afro-brasileira não será evidenciado aqui. Ambas, embora a negra possa ocorrer em outros países, serão levadas em conta como uma só, já que este artigo tratará da literatura produzida no Brasil. Além disso, para que assim sejam, elas terão que ser representadas pela escrita do(a) negro(a), que faz parte de grupos sociais distintos dos brancos e pertencem a esses lugares de fala. Caso contrário, como diz Duarte (2020) ao falar da possibilidade de considerar literatura negra todas as obras que têm o negro como tema, independente da autoria, o conceito, enquanto operador teórico e crítico, seria enfraquecido e teria a eficácia limitada.

1 PERIFERIA, MARGINALIZAÇÃO E SUBMUNDO

É um equívoco pensar que os temas da "literatura marginal" sejam frutos de um discurso posterior à década de 70, pois, como afirma Oliveira (2011, p. 33), "Vale lembrar que a condição periférica, marcada pela pobreza e exclusão social, econômica e cultural, sempre ganhou as páginas da nossa literatura." Porém, a proporção era divergente. Segundo estudiosos como Coutinho (2004), Nicola (2001) e Bosi (1994), o Quinhentismo, considerado o ponto de partida da escrita literária brasileira, já apresentava a rotina de uma das classes que, posteriormente, seriam subjugadas aos padrões e intentos da corte: a indígena. No entanto, o que se pode falar da revolução cultural que aconteceu na década de 1970 é que o discurso a respeito das classes "marginalizadas" e o sistema de produção desses discursos mudaram, em especial, o referenciado ao povo negro. Se o menos favorecido era representado na literatura de forma terceirizada, agora, ele, já que podia produzir o seu próprio livro e vendê-lo, passa a falar sobre si e sobre as suas vivências.

Os termos "marginal" e "periférico" possuem significados que precisam ser analisados. Um ponto em comum entre os dois termos refere-se à questão espacial e geográfica, pois o que está na margem ou na posição periférica pode ser assim definido por encontrar-se distante do centro. Já o termo "marginal", no que diz respeito à questão estético-cultural, pode ser definido tanto no que diz respeito ao novo, que contrapõe-se ao que está vigente, quanto ao que concerne ao movimento da década de 70, o qual visava a uma ruptura do sistema de produção de livros, que era majoritariamente realizada pelas grandes editoras. Como afirma Oliveira (2011, p. 31)

O sentido de "marginal", do ponto de vista estético-cultural, tem uma aplicação específica na história da literatura brasileira, referindo-se ao movimento da década de 70 do século XX, contrário às formas comerciais de produção e circulação da literatura, conforme o circuito estabelecido pelas grandes editoras.

Vale lembrar que o termo "marginal" assumiu outras conotações e, hoje, distanciando-se da etimologia da palavra, popularizou-se como algo negativo. Observe um dos significados atribuídos a ela pelo dicionário online de português: "Que não respeita leis; criminoso: sujeito marginal". Por outro lado, o termo periférico pode referir-se àqueles que vivem, como a própria definição geográfica o fez, longe do cerne. Porém, a questão não é puramente espacial, mas também social, porque a periferia é, geralmente, habitada por pessoas que possuem rendas inferiores às dos moradores do centro e que, consequentemente, desfrutam de uma outra realidade social. Isso pode ser percebido na fala de Oliveira (2011, p. 32): "A periferia também se reveste de uma conotação política, definida em oposição ao centro, tomado como modelo de desenvolvimento, seja econômico, social ou cultural."

No que diz respeito ao termo "submundo", Cunha e Cintra (2013) afirmam que "sub" é um prefixo de origem latina, que tem a inferioridade e o movimento para baixo no seu sentido. Imaginar uma literatura que represente o submundo é pensar em textos voltados para uma realidade que está escondida, exatamente por estar abaixo da linha do horizonte. Tal posição é conferida por um sistema capitalista, que insiste em valorar de forma negativa a produção/expressão cultural do que está na periferia, e em considerá-la uma arte inferior à da elite central, na tentativa de perpetuar o discurso dominador. Por isso, se a periferia, na maior parte das vezes, foi relatada na literatura brasileira por meio da narrativa de alguém que não pertencia a ela, isso reafirma a hipótese de que o silenciamento do periférico deu-se pelo discurso alheio, que falava de forma teórica sobre um lugar ao qual não pertencia. É impensável cogitar a literatura produzida longe dos centros como uma literatura inferior, senão quando direcionado por um discurso canônico, preconceituoso e elitista sobre as produções artísticas. O inverso disso, tal literatura evidencia mais uma expressão da arte, o que a enriquece e a democratiza, além de ampliar as perspectivas teóricas acerca do que se produz num país, como afirma Oliveira (2011, p. 35):

Assim, trata-se de uma produção com repercussões não apenas do ponto de vista estético, pois a literatura é tomada também como um modo de habitar a periferia, o que certamente acrescenta novas perspectivas no campo das investigações literárias.

Aqui, os termos "periferia" e "marginalidade" são tratados no que diz respeito ao espaço geográfico, que é produzido à margem, distante do centro. Isso porque, apesar da relação do tema e do processo de produção que Miró tem com a Geração Mimeógrafo e com a Poesia Marginal, sua poesia, hoje, também tem outras relações temáticas e editoriais, já que alguns dos seus livros foram lançados por editoras conceituadas.

O que entra em cena, a partir da possibilidade de o autor "periférico" ter autonomia para escrever, é o próprio lugar ao qual ele pertence, o que lhe permite ter uma representação do seu locus pela sua ótica, que culmina para a sua narrativa. Isso, se parece ser apenas mais uma visão sobre a realidade na qual ele está inserido, já que um homem elitizado pode descrever as ruas de uma favela tão bem quanto um que não o seja, mostra-se cabalmente necessário, pois o que está em jogo não é o dizer, mas a propriedade para que tal coisa seja dita. A questão não é descritiva, e sim discursiva, tendo o discurso como espaço de luta de poder. Nessa perspectiva, os sujeitos discursivos assumem posições diferentes, pois

Dessa forma, a literatura periférica desafia a teoria da literatura a articular a voz do sujeito que fala desde sua condição marginal à posição hegemônica do intelectual que fala sobre uma realidade e sobre práticas por ele desconhecidas, avaliadas segundo lugares sociais e institucionais, representantes do centro e da ordem, que inevitavelmente carregam posições ideológicas e interesses que condicionam a sua interpretação (OLIVEIRA, 2011, p. 33).

É evidente que a luta pela quebra do preconceito e das desigualdades sociais não é um desafio que diz respeito somente aos que os sofrem, mas sim de todo e qualquer pessoa que não esteja corrompido pelo olhar eurocêntrico e capitalista. Isso quer dizer que a grandiosidade de obras engajadas, como a de Jorge Amado (2012), a exemplo de Capitães da areia, não pode ser desmerecida. Ela conta de forma excelente a história de meninos moradores de rua, que viviam numa espécie de sociedade paralela e que eram liderados por Pedro Bala, um garoto que teve o pai morto em um cais. Porém, não se deve desconsiderar que o próprio sistema cria leis que favorecem as pessoas que se enquadram dentro delas, mesmo que tais pessoas não sejam coniventes com o que acontece. Como explica Ribeiro (2017, p. 68), "por mais que pessoas pertencentes a grupos privilegiados sejam conscientes e combatam arduamente as opressões, elas não deixarão de ser beneficiadas, estruturalmente falando, pelas opressões que infligem a outros grupos".

Além disso, é importante salientar que o falar discursivo sobre um lugar de fala não é um falar individual, e sim um falar coletivo, que apresenta marcas de um grupo: "Não se trataria de afirmar as experiências individuais, mas de entender como o lugar social que certos grupos ocupam restringem oportunidades" (RIBEIRO, 2013, p. 61). O individual é de suma importância, mas como falar sobre todas as individualidades por si próprias sem cair no anarquismo? Isso se dá exatamente por levar-se em conta que o discurso individual está inserido dentro de um discurso coletivo. Para exemplificar a possibilidade de haver uma dissonância entre o ser individual e o seu grupo coletivo, Ribeiro (2017, p. 67), ao explicar o pensamento de Collins, ainda ressalta que "o fato de uma pessoa ser negra não significa que ela saberá refletir crítica e filosoficamente sobre as consequências do racismo". Por outro lado, os que estão dentro dos padrões impostos, como já foi dito, podem despertar essa crítica.

E é até contraditório falar sobre a subcategorização da produção literária "não padrão", sendo ela produzida por pessoas relativas à periferia ou até mesmo por negros(as), já que um dos maiores expoentes, senão o maior, era periférico e negro: Machado de Assis. No entanto, apesar de a sua obra ser revolucionária e, no sentido mais estrito da palavra, marginal, já que veio da margem, "o que se nota é o texto voltado para a crítica ao mundo dos brancos, marcada pela ironia e por um conjunto de procedimentos dissimuladores. O ponto de vista afroidentificado nem sempre se explicita, como em mitos autores contemporâneos" (DUARTE, 2013, p.149). Ainda assim, o valor da obra de Machado, no que diz respeito à afro-brasilidade, é imenso, pois, diante de todo o cenário escravocrata ou recém-abolicionista, o autor conseguiu estrategicamente vilanizar em suas obras os opressores, como também afirma Eduardo de Assis Duarte, numa entrevista concedida a Juli Wexel, no canal Futura. Ainda segundo o estudioso, Machado, utilizando-se da sua genialidade de literato, driblava as possíveis censuras e chegava inclusive às casas dos senhores escravocratas, por meio dos periódicos dos jornais para os quais escrevia.

2 MIRÓ: A EXPRESSÃO DO DIA A DIA NA VOZ DO POETA

Já na nota da 1ª edição do livro Miró até agora, Sennor Ramos (MIRÓ, 2016, p. 7), organizador do livro e um autodeclarado admirador de Miró, relata como foi o seu encontro com o poeta em um bar: "Chegou, sentou, falou da vida, dos últimos recitais e apresentou o livro que acabara de lançar. Comprei um e desde aquele dia me tornei admirador da sua poesia e da forma como a recita". Tal encontro já apresenta a forma literária marginal de Miró, pois a maneira como aconteceu a divulgação da obra, como foi visto, é característica dos poetas marginais. Pode-se perceber isso na citação que Oliveira faz de Hollanda:

O resultado disso é o surgimento de obras, sobretudo poéticas, produzidas artesanalmente, a partir de um registro espontâneo da linguagem, dando lugar à proliferação de "livrinhos" distribuídos diretamente pelo autor em bares, portas de museus, teatros e cinemas (HOLLANDA apud OLIVEIRA, 2011, p. 32).

A periferia, com os seus temas sociais marginalizados, no sentido de lançados à margem, agora recebe uma voz: a de Miró.

No prefácio do referido livro, Wilson Freire (MIRÓ, 2016) afirma que o poeta pensava em "morrer ontem". A partir daí, o texto recebe matizes dos problemas sociais enfrentados pelos "pobres", "pretos" e "periféricos", que tiveram o seu primeiro medo da morte ainda no "navio negreiro do continente africano" (MIRÓ, 2016, p.15). Essa voz discursiva, a qual provavelmente seja a voz de Miró, não é exclusivamente dele, mas de um grupo social, representado pela propriedade de lugar de fala que o próprio poeta tem, pois sente na própria pele o peso da sua realidade: "um traço bastante inovador da literatura marginal da periferia é justamente o seu caráter de voz coletiva, comprometida em contar e escrever a própria experiência, em contraponto à cultura oficial dominante" (OLIVEIRA, 2011, p. 34).

Alguns teóricos apresentam a poesia marginal associando-a à periferia, mas Miró aceita a designação de "marginal" que dão à sua poesia, porque ela ajuda a descaracterizar o mercado editorial, e não por ser feita na periferia. Isso pode ser percebido na fala de Rosário (2007, p. 45): "Não é o caso da visão do poeta Miró sobre o tema, por exemplo, que faz questão de definir que aceita tal designação para sua poesia: devido à maneira como sua arte é feita - fora do circuito editorial tradicional - e não por ele morar na Muribeca". Sabendo-se que todo escritor sofre influência dos autores que leu ao decorrer da vida, Miró se diz fruto também do período conhecido como o referente à Poesia Marginal.

No caso do poema Notícia de última hora, que fala "Quem pensava achar num caminho/ uma bala perdida/ no exato momento em que nada procurava?" (MIRÓ, 2016, p.25), é apresentada uma realidade dos moradores da favela que foi evidenciada pelo O globo, no dia 27 de setembro de 2019. A matéria diz que 52% das crianças mortas por balas perdidas na cidade do Rio de Janeiro foram vítimas de confronto entre policiais e bandidos e, também, que o local mais comum para essa troca de tiros é a favela. Isso reforça a verossimilhança na poética de Miró, que tem tal expressão da realidade como uma das suas características.

O poema Finalmente, aonde é que vamos parar também não foge do tema. Em forma de um diálogo, o texto diz: "o policial perguntou: - tá indo para onde, boy? / - estou voltando, senhor! / foi preso por desacato" (MIRÓ, 2016, p. 30). Essa face ditadora é um dos medos de morrer do poeta apresentados por Wilson Freire. Tal medo surgiu, porque, ela, a voz da periferia, foi preso somente porque riu: "Eu pensei que ia morrer quando vi essa cena se repetir comigo 30 anos mais tarde, só porque eu estava rindo" (MIRÓ, 2016, p. 16).

A literatura marginal e periférica é, antes de tudo, uma literatura de engajada e panfletária, visto que o seu intento maior é conceber voz a pessoas que foram silenciadas ou que tiveram os discursos terceirizados. Como diz Oliveira (2011, p. 35),

Essa literatura não fornece apenas um repertório de técnicas literárias, mas transforma-se em uma ferramenta para a organização da vida individual e coletiva, uma "estratégia de ação", ultrapassando a concepção estabelecida de literatura como bem espiritual, fonte de "ilustração" e prazer desinteressado.

Tal literatura pode causar incômodo por diversos motivos: promove a descentralização do cânone literário, questiona a hegemonia que existe em todos os setores da sociedade e desfavorece a classe dominante, marcadamente hegemônica, branca e cristã. Quando considerada literatura por tais conservadores, assim o é num patamar abaixo, tendo que ser inferiorizada por conter, na maioria das vezes, uma linguagem fora dos padrões tidos como "cultos" e acessível ou por descrever realidades que o cânone ainda tenta tirar do horizonte e condicioná-las ao "submundo", a um mundo invisível. Para os seguidores do cânone, é importante que o poder de fala esteja sob o domínio deles. Como afirma Ribeiro (2013), retomando a fala de Alcoff, é preciso perceber os mecanismos que o colonialismo usa para apropriar-se das identidades, e que, para se ter um debate sobre tal processo, é necessário questionar a apresentação das identidades criadas pela "lógica colonial".

No poema Quatro horas e um minuto, há o trecho "cinco horas/ cinco soldados/ espancando cinco pivetes/ filhos sem pai e/ órfãos de pão" (MIRÓ, 2016, p. 215). Nele, o eu lírico denuncia não só a agressão em si, mas também a condição social dos meninos que não possuem pai e também não possui pão, sendo, portanto, crianças que não têm o que comer, já que o "pão" é, como expresso no imaginário cristão, o alimento do corpo e da alma, pois Jesus diz em 1º Coríntios 11: 23- 24: "porque eu recebi do Senhor o que também vos ensinei: que o Senhor Jesus, na noite em que foi traído tomou o pão; e, tendo dado graças, o partiu e disse: Tomai, comei; isto é o meu corpo que é partido por vós; fazei isto em memória de mim." Assim, na poesia de Miró, é possível perceber uma forte crítica à religião, evidenciada estes versos, que finalizam o poema analisado: "Seis horas/ o Recife reza/ e eu vou voando pra/ ver Maria". Como se nota, existe uma sátira ao discurso religioso, que se mostra silente a respeito da violência que acomete os que estão longe do "centro" do sistema capitalista, unindo, assim, capitalismo e religião. A tal posicionamento da sociedade em geral faz-se mais urgente uma resposta para a pergunta de Borges (2019, p. 49): "por que o fato de considerar que um indivíduo não está, supostamente, sendo útil à sociedade garante argumento para intervenções e criminalização desse cidadão?"

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Sem a pretensão de esgotar as discussões sobre a presença/ausência dos escritores e poetas negros e negras no cânone nacional, as ideias aqui apresentadas visam lançar mais um olhar, dentre tantos outros que já começam a permear as lutas antirracistas, os cursos de Letras e, consequentemente, os pilares da sociedade brasileira, de forma crítica, sobre os conteúdos relacionados à literatura brasileira, oferecendo maior visibilidade sobre a escrita periférica, marginal ou regional. Aqui, procuramos edificar novos conceitos sobre Literatura Marginal, apontando diferenças e intersecções com a Literatura Periférica, que se insere nos caracteres de regionalismo, procurando ressignificar esses conceitos, os seus contextos e as estruturas de produção vigentes, visando não cair no estereótipo ou na subcategorização de tal escrita, amparados por Bosi (1994).

A diversidade étnico-racial-social-econômica foi aqui discutida e a importância da criação literária por negros foi evidenciada, visto que a representação do lugar de fala deve ser sempre levada em conta, pois teoria sem vivências pode levar não só ao estereótipo, como também à exclusão e à privação do direito de falar de determinados sujeitos. O objetivo-geral deste estudo foi compreender a importância da fala de autores negros na construção da Literatura Brasileira Contemporânea. Tal objetivo deu origem a outros três, que foram especificados e trabalhados dentro do seu foco dentro da poesia de Miró ou como contextualização teórica: a presença da discussão dos conceitos, a contextualização como reprodutora da estética da poesia de Miró e, por último, a força da interpretação das mensagens do poeta negro-marginal em suas temáticas sociais, inclusive em seu caráter polêmico e decolonial, baseando-nos em Ribeiro (2017).

Percebeu-se a insurgência de novos perfis de escrita, assim como a urgência na difusão da literatura escrita por autores negros, não só pela representação que ela tem, mas também pela apropriação do lugar de fala que lhes pertence. A partir da análise de textos de Miró, a questão do domínio do outro por meio da palavra foi evidenciado, denunciando, assim, o perigo do monopólio do ato de dizer, como bem defende Ribeiro (2017). Ou seja, o processo de quebra do monopólio do falar dá-se pelo escrever, publicar, difundir e, como já evidenciado, o intuito deste trabalho, debater tais questões.

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