A MULHER DA/NA LITERATURA POPULAR NORDESTINA: NOTAS SOBRE A MISOGINIA NA LITERATURA BRASILEIRA Texto completo in: Revista Athena, ISSN: 2237-9304 vol. 19 n. 2, 2020.

09/02/2021

INTRODUÇÃO

Pensar a produção literária brasileira, em todos os seus formatos, desde o processo de criação ao consumo, ainda é pensar deliberadamente em um público marcadamente masculino, embranquecido e tradicionalista. Segundo Dalcastagné (2012), a escrita e a leitura ainda são majoritariamente dos homens brancos no Brasil. Estudos desenvolvidos pela pesquisadora desde 2005, publicados pela Universidade de Brasília (2012), mostram que, de todos os romances publicados pelas principais editoras brasileiras, em um período de 15 anos (de 1990 a 2004), 120 em 165 autores eram homens, ou seja, 72,7%; e, ainda: a percentagem de escritores negros e negras não chegava a 30%. Dalcastagné (2012) chama a atenção para o fato de que, em todos os principais prêmios literários brasileiros (Portugal Telecom, Jabuti, Machado de Assis, São Paulo de Literatura, Passo Fundo Zaffari & Bourbon), entre os anos de 2006 e 2011, foram premiados 29 autores homens e apenas uma mulher. Para Dalcastagnè (2012), desde os tempos em que era entendida como instrumento de afirmação da identidade nacional, a Literatura Brasileira é um espaço em disputa e, na atualidade, essa luta está cada dia mais acirrada, com autores e críticos lutando por espaço, seja ele inscrito no mapa social, ou constituído numa narrativa, estabelecendo hierarquias que definem quem pode passar por esta rua, quem entra neste lugar ou naquele lugar, quem escreve literatura. Mais, ainda: acreditamos que essa disputa, momentaneamente inglória da mulher, por seu espaço no panteão da LB, que se estabelece pelo histórico sexista da sociedade brasileira, é espaço privilegiado para as lutas contra diversos preconceitos, como o machismo, o racismo e a xenofobia, visto que a problemática é agravada quando se trata da literatura regionalista. Nos livros de cordel, comercializados nas feiras das cidades nordestinas, é praticamente impossível encontrar escritos femininos. 

A narrativa na literatura brasileira: o cordel 

A Narrativa pode ser definida como uma sequência de acontecimentos interligados, que são transmitidos em uma estória, reunindo atores, aqueles que as narram e aqueles que as ouvem, leem ou assistem, sendo que quem narra, determina quando e como a informação será veiculada (PELLEGRINI, 2003). ...a narrativa está presente em todos os tempos, em todos os lugares, em todas as sociedades; a narrativa começa com a própria história da humanidade; não há, nunca houve em lugar nenhum povo algum sem narrativa; todas as classes, todos os grupos humanos têm as suas narrativas, muitas vezes essas narrativas são apreciadas em comum por homens de culturas diferentes, até mesmo opostas: a narrativa zomba da boa e da má literatura: internacional, trans-histórica, transcultural, a narrativa está sempre presente, como a vida (BARTHES, 1987, p. 103-104). A literatura de cordel compreende narrativas que são elaboradas no cotidiano, a partir da experiência individual de cada contador em sua labuta diária, e revestidas de singularidade, que não estão limitadas apenas ao seu valor estético, mas em sua força representativa. O valor sociocultural que as revestem evidencia uma cultura característica do local do seu autor. Além dessa característica, essas narrativas revelam informações históricas, etnográficas, sociológicas, jurídicas e sociais, uma vez que se constituem em um documento vivo que representa costumes, ideias, mentalidades, decisões e julgamentos (CASCUDO, 1984). O conhecimento da cultura local reforça a valorização e incentiva o desenvolvimento de uma região (LÓSSIO; PEREIRA, 2007), este aspecto associado à mestiçagem étnica e o hibridismo cultural do Brasil são fontes geradoras de uma ampla gama de diversidades de saberes (CANCLINI, 2003). É nesse ambiente que floresce a Literatura de Cordel, nome utilizado em Portugal para designar folhetos volantes ou folhas soltas, em que eram pendurados por um cordão e expostos nas feiras do país (SANTOS; FLORÊNCIO, 2017). 

Na literatura brasileira, o número de autoras é consideravelmente menor do que de autores (DALCASTAGNÈ, 2012). Essa diferença, também é notada na literatura de cordel, suscitando assim as discussões sobre as diferenças de gênero, aqui definida como uma categoria que indica por meio de desinências uma divisão dos nomes baseada em critérios tais como sexo e associações psicológicas. Dessa forma, neste estudo, propomos abordar as questões da diferença de gênero na autoria da literatura de cordel. 

As questões de gênero e autoria na literatura brasileira 

De acordo com Scott (1995), gênero é um elemento constitutivo das relações sociais construídas sobre as diferenças percebidas entre os sexos e mais que isso, dá um novo significado às relações de poder, uma vez que, as mudanças na organização das relações sociais correspondem sempre a mudanças nas representações de poder. Dizer que as diferenças de gênero são construções sociais não é nenhuma novidade. Há muito tempo o tema da "diferença sexual" é objeto de estudo das ciências sociais e da antropologia (ARAÚJO, 2003); para Holanda (2014), há gêneros masculino, feminino e neutro.

(...)

Considerações finais 

Definitivamente, a Literatura Brasileira não é igualitária entre homens e mulheres que escrevem, desde o primeiro deles nascido por essas terras (Gregório de Matos Guerra, 1636-1696). Nos séculos em que o Brasil viveu sob domínio Português (Período Colonial, de 1500-1822) e, posteriormente, um Império de monarquia também portuguesa (1822 - 1889), as mulheres sempre estiveram subjugadas: as negras, que viviam nas casas-grandes como amas de leite, cuidavam da casa, prestavam serviços, e muitas vezes ainda eram submetidas às condições de violência sexual; e as brancas, vistas apenas como a elegância da sociedade, eram as responsáveis por preservar os costumes europeus, sempre excluídas da educação e das organizações sociais (BASEGGIO; SILVA, 2015). Nas fases mais importantes para a LB, tanto em relação ao início do rompimento com a cultura portuguesa (Romantismo 1854 a 1881), da progressão qualitativa da produção artística (Realismo 1881 a 1892) ou da grande quebra de paradigmas proposta pela Semana de Arte Moderna (Modernismo, 1922), a participação da mulher era incipiente. Na verdade, nenhuma mulher, poeta ou escritora, alcançou destaque maior entre os cânones da nossa literatura. Os livros didáticos e mesmo a História da Literatura Brasileira fizeram a mulher parecer não existir no cenário artístico brasileiro. Pode-se dizer que a aparição da mulher na LB coincide com a aparição da mulher no próprio circuito sociocultural. Fazendo-se anotar que a literatura, enquanto arte nacional, não contribuiu para o aparecimento da mulher, mas, como também nos extratos sociais de poder, esteve o tempo todo ao lado do poder, de quem dispunha de direitos e privilégios. Principalmente em termos gráficos e de divulgação, ou seja, produção e consumo. Percebe-se, portanto, a urgência na difusão da literatura escrita pelas mulheres brasileiras, aqui figuradas pelas cordelistas, não só pela representação que ela tem, mas também pela apropriação do lugar de fala que lhes pertence. Este alcance não pode ficar restrito a grupos específicos, em geral, formados por intelectuais e estudiosos dentro dos cursos de Letras, e, para isso, é necessário analisar também fatores técnicos como a dificuldade de publicação nas grandes editoras desse estilo literário, duplamente marginalizado. Ou seja, é preciso enfrentar o monopólio do falar/escrever majoritariamente masculino, mascarado pela posição de inferioridade imposto à mulher durante séculos. Mais que isso, é preciso descentralizar a ideia do cânone da LB, ainda situado junto às oligarquias econômicas, e isso pode ser possível a partir dos estudos das literaturas outras (populares, regionais, negras, femininas), retirando delas o peso da palavra marginal.

Referências 

ARAÚJO, Maria de Fátima. Diferença e igualdade nas relações de gênero: revisitando o debate. Psicologia Clínica, Rio de Janeiro, v. 15, n. 2, p. 41-52, 2003. 

BARTHES, Roland. A aventura semiológica. São Paulo: Edições 70. 1987. 272p.

BERGAMASCO, Adrielle dos Santos. A representação da mulher e da sua sexualidade na literatura de autoria feminina contemporânea. In: IVSimpósio de Educação Sexual, Feminismo, identidades de gênero e políticas públicas, Universidade Estadual de Maringá, 2015. 

BASEGGIO, J. K.; SILVA, L. F. M. As condições femininas no Brasil colonial. Revista Maiêutica, Indaial, 3 (1): 19-30, 2015. 

CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. 4ª ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2003. 416p.

CASCUDO, Luís da Câmara. Literatura Oral no Brasil. 3ª ed. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1984. 480p. 

DALCASTAGNE, Regina. Literatura Brasileira Contemporânea: um território contestado. São Paulo: Editora Horizonte, 2012. 208p. 

LOURO, Guacira. Gênero, História e Educação: construção e desconstrução. Educação e realidade. v. 20, n. 2, p. 1-7, 1995. 

LÓSSIO, Rúbia Aurenívea Ribeiro; PEREIRA, Cesar de Mendonça. A importância da valorização da cultura popular para o desenvolvimento local. In: III Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura, Salvador: EDUFBA, 2007. 

MUZART, Zahidé Lupinacci. Feminismo e literatura ou quando a mulher começou a falar. In: MOREIRA, Maria Eunice (org.). História da Literatura, teorias, temas e autores. Porto Alegre: Mercado Aberto, 2003. 

MUZART, Zahidé Lupinacci. Pedantes e bas-bleus: a história de uma pesquisa. In: MUZART, Zahidé Lupinacci (org.). Escritoras Brasileiras do século XIX. Vol. 1, 2ª ed. Florianópolis: Mulheres, Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2000.

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