A ESCOLA NO CÁRCERE: UMA REFLEXÃO SOBRE A EDUCAÇÃO DENTRO DOS PRESÍDIOS BRASILEIROS

30/03/2021

Texto de Roberto Remígio Florêncio e Ênio Silva da Costa, publicado na Revista Educação em Debate, da Faculdade de Educação - FACED da Universidade Federal do Ceará - UFC, ISSN 2526-0847, vol. 43 n.84 , 2021.  DOI: https://dx.doi.org/10.24882/eemd.v43i84.1121

Resumo

O debate sobre a educação dentro do sistema prisional do Brasil está fortemente atrelado à função social da escola, assim como a política criminal está relacionada diretamente ao fracasso do sistema prisional, levando em conta seus objetivos primordiais: ressocializar e inserir seus sujeitos na sociedade, com a perspectiva da não reincidência ao sistema carcerário. O presente estudo busca contribuir com o debate sobre o papel das escolas dentro das prisões e analisar, junto à legislação vigente, o papel desta política pública no processo de reintegração social de apenados brasileiros na atualidade. A partir da pesquisa bibliográfica, da análise documental e da observação, chega-se à conclusão de que muitas leis surgiram em direção à possibilidade de educação emancipatória e da remição de penas, mas, na prática, pouco tem sido feito para minorar os efeitos da prisionização, da reincidência e das consequências sociais, que produzem um efeito retroalimentador do sistema carcerário, enquanto espaço meramente punitivo.

1 INTRODUÇÃO 

Com um sistema prisional caótico desde a sua criação (CARVALHO FILHO, 2002, p. 10), os espaços-prisão, conforme conhecemos ou temos informações, são locais cinzentos, escuros, cobertos de crueldades e terror. Cercados por paredões e grades, sob a mira de armas e olhares acusadores, são quase 2 milhões de seres humanos no Brasil que passam anos de suas vidas em cumprimento de penas.

A análise crítica deste escrito vai ao encontro dos estudos de Onofre (2007), Capeller (1985) e Freire (2005), ao identificar que a prisão brasileira está envolta em um manto de segregação que perpassa toda a sociedade. Os presos fazem parte da população dos empobrecidos, "[...] produzidos por modelos econômicos excludentes e privados de seus direitos fundamentais de vida [...]" (ONOFRE, 2007, p. 12). São produtos da segregação e do desajuste social, da miséria e das drogas, do egoísmo e da perda de valores humanitários. "O conceito de ressocialização surgiu com o desenvolvimento das ciências sociais comportamentais, no século XIX, e é fruto da ciência positivista do direito, refletindo com clareza o binômio ideologia/repressão." (CAPELLER, 1985, p. 129). Essa ressocialização não aparece clara no texto da Lei de Execução Penal - LEP (BRASIL, 1984, p. 13), embora o artigo 1.º indique que o objetivo da execução penal é efetivar as disposições da sentença ou de uma decisão criminal e "[...] proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado ou do internado [...]". Na prática, as supostas "condições" não passam de letra morta da lei. No artigo 3.º, diz que "[...] ao condenado e ao internado serão assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei." (BRASIL, 1984, p. 17). Ora, se o direito à educação não é alcançado pela sentença, por que razão a mesma lei menciona, de forma muita tímida, como será promovida a assistência educacional nos estabelecimentos prisionais? 

2 UMA REFLEXÃO SOBRE A EDUCAÇÃO PARA ALÉM DAS GRADES 

Diante do quadro de desumanidade e violência do encarceramento em massa, a esperança está em educar os sujeitos numa pedagogia de humanização e emancipação. Não uma pedagogia para servir ao sistema, no seu atual formato, mas para que o aluno-interno se reconheça como sujeito capaz de construir outra história de vida, nova e libertadora. Uma educação que esteja disposta a considerar o ser humano como sujeito de sua própria aprendizagem, de sua própria evolução como ser social, e não como mero objeto do sistema. (...)

3 A EDUCAÇÃO PARA O MUNDO DO TRABALHO 

O trabalho é entendido como a atividade do homem pela qual ele transforma a natureza e é, ao mesmo tempo, por ela transformado. É a maneira pela qual o homem se relaciona com a natureza com a intenção de transformá-la e adequá-la às suas necessidades vitais (FREIRE, 2005). Ao produzir seus meios de vida, o homem produz a sua própria vida material e espiritual. Nesse sentido, a noção de produção pelo trabalho não apenas diferencia o homem dos animais, como também o explica: é pela produção que se desvenda o caráter social e histórico do homem, e é também pela produção que o homem estabelece relações com seus semelhantes e produz conhecimentos, constrói a sociedade e faz história. É muito importante que haja nas unidades prisionais uma proposta de educação para o mundo do trabalho, "[...] uma escola associada à qualificação profissional, ou seja, uma escola que articule educação e trabalho [...]" (JULIÃO, 2007, p. 45), e não o que se observa hoje, isto é, a simples ocupação ou o desenvolvimento de atividades laborativas com artesanatos. Justamente pela ausência de crianças e adolescentes entre os protagonistas dessa modalidade, a educação e o trabalho são duas importantes categorias que permeiam toda a discussão sobre programas de ressocialização no sistema penitenciário, embora sejam vistos de forma diferente, razão pela qual muitos valorizam o trabalho como proposta de programa de ressocialização (LEITE, 1997). Hoje, no entanto, predomina o consenso de que tanto a educação quanto a preparação para o mundo do trabalho devem estar articuladas (JULIÃO, 2006), ainda que muitos fatores corroborem para que educação e trabalho estejam em lados opostos, sendo "concorrentes".  (...)

4 CONSIDERAÇÕES SOBRE O CÁRCERE 

De fato, algumas prisões brasileiras funcionam como verdadeiros campos de concentração em tempos de suposta paz social, espaço onde não prevalecem os aspectos humanos, e os homens são reduzidos a categorias de "bichos", independentemente da gravidade do crime que cometeram. Segundo Carvalho Filho (2002), desde 1820 se constata que a prisão, longe de transformar os criminosos em gente honesta, serve apenas para fabricar novos criminosos ou para afundá-los ainda mais na criminalidade. As condições reais de encarceramento sempre foram ruins; a prisão, antes de ser um instrumento de cumprimento da pena, é um espaço sem boas condições de convivência. Era o lugar de espera para os condenados serem supliciados, por isso não havia por que ter condições mínimas para a existência humana prolongada nestas. Hoje, produz-se mais caos e deterioração de caráter, principalmente pela ausência de uma política criminal e penitenciária que tenha como foco a ressignificação social dos sujeitos.

Nesse ambiente hostil, uma constatação é inevitável: a prisão mata o homem em vida. É um absurdo que, em nome da lei, alguém tenha de ser submetido a condições subumanas, sem possibilidades de desenvolvimento pessoal, cultural, educacional ou de formação e qualificação profissional, tendo que ser submetido a regras de sociabilidade nas quais predomina uma lógica de favores e benefícios ditados por aqueles que têm o poder sobre os outros, inclusive sobre a vida. Entre tantos fatores adversos à pena de prisão, está, inclusive, o seu pretenso objetivo de ressocializar os sujeitos, que, durante sua estada na prisão, é imerso em procedimentos, atitudes e comportamentos que os tornam bons presos para o sistema prisional e incapazes de retornar ao convívio social no exercício pleno da cidadania. A questão se agrava com o divórcio da política criminal e penitenciária com as políticas sociais, principalmente a educacional. A proposta de ressocialização contida na Lei de Execução Penal (LEP) não tem sentido, pois o número de reincidentes não é levado em conta. Estima-se que mais de 80% reincidam, mas os diretores dos estabelecimentos penais e as empresas que administram as unidades não são questionados quanto aos números da reincidência, embora, quando ocorrem motins, rebeliões ou fugas, os diretores sejam substituídos ou os contratos das empresas sejam rescindidos. Fica evidente que a prisão se configura, apenas, como espaço de punição (LEME, 2007). Ainda que no cárcere alguns sujeitos utilizem também a educação como estratégia de sobrevivência, faz-se necessária uma discussão mais aprofundada sobre a proposta de educação dentro das unidades prisionais, que, antes de ser um privilégio para "bandidos" ou "marginais", é um direito universal garantido a todos os sujeitos, onde quer que eles estejam. Vê-se que uma construção possível é uma proposta de educação emancipadora e libertadora, conforme preceitos freirianos, que se articule ao mundo do trabalho e seja também a garantia de um direito à escolarização aos que dela foram privados, mesmo antes do encarceramento (COSTA, 2011). 

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS 

A escola institucional que funciona nas prisões não pode se limitar à sua função social diferenciada de preocupar-se exclusivamente em transmitir conteúdos e possibilitar mobilidade social. Ela está desafiada a ir além, contribuindo também para que os sujeitos encarcerados tenham novas oportunidades, compreendam e reflitam sobre os processos de encarceramento, desenvolvam estratégias de sobrevivência ao poder despersonalizador e possam reintegrar-se ou reinserir-se socialmente com mínimas possibilidades de reincidências no cometimento de crimes. Por fim, o andar pelo e entre o cotidiano prisional feito por esta pesquisa revela que há um mundo à parte naquele universo, um mundo patrocinado pelo Estado e sobre o qual ele tem pouco ou quase nenhum controle. Um mundo com leis cruéis, implacáveis, em que os sujeitos encontram-se, o tempo todo, à deriva de sua própria sorte, na berlinda. Um mundo em que os poucos minutos de descontração, de acesso à cultura, ao conhecimento novo por meio da "escola" são vitais para que não se perca a essência humana. 

Urge a necessidade de transformar em agenda política a situação precária do sistema prisional, promover debates com a sociedade, mobilizar para reformar de fato o sistema que se encontra falido desde o seu nascimento. Parece que, enquanto a prisão existir somente para os despossuídos, não haverá preocupação em reformá-la. Tanto a sociedade quanto os operadores do direito precisam conceber que o cometimento do crime não desqualifica como ser humano os sujeitos privados de liberdade. Isso é fundamental para que não predomine o sentimento descrito por Lima (2010, p. 107): "[...] o preso é alguém tão despojado, tão despossuído, que sua conquista do direito à voz soa como anúncio da inevitável desestabilização, do caos, da insegurança coletiva." Desse modo, mais do que humanizar as condições do encarceramento, é preciso proporcionar aos encarcerados condições dignas de reintegração social, oportunidades educacionais, profissionais e, sobretudo, o exercício da esperança, possibilitada pela aprendizagem. Dessa forma, é importante reafirmar que algumas mudanças começam a acontecer, como a aplicação das penas alternativas e a justiça restaurativa, assim como a participação de alguns setores da sociedade civil organizada na promoção de debates em que se discutem as condições de existência no cárcere, criando grupos de trabalho para propor intervenções no sistema como um todo. Por fim, deve-se salientar que, todos os dias, professores e professoras adentram os portões das prisões brasileiras levando, juntamente com sua bagagem teórica e instrumentos didáticos, perspectivas de construção do conhecimento e aporte crítico aos paradigmas contemporâneos, fortes correntes para a libertação do saber, àqueles que, temporariamente, encontram-se aprisionados. 

REFERÊNCIAS 

BRASIL. Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984. Institui a lei de execução penal. Brasília, DF: Casa Civil, 1984. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/leis/l7210.htm. Acesso em: 6 mar. 2021. 

BRASIL. Lei nº 12.245, de 24 de maio de 2010. Altera o art. 83 da Lei n.o 7.210, de 11 de julho de 1984 (Lei de Execução Penal), para autorizar a instalação de salas de aula nos presídios. Brasília, DF: Casa Civil, 2010. Disponível em: https://www. planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Lei/L12245.htm. Acesso em: 6 mar. 2021. 

BRASIL. Ministério da Justiça. Departamento Penitenciário Nacional. Relatório 2018. Brasília, DF, 2018. Disponível em: https://portal.mj.gov.br. Acesso em: 6 dez. 2019. 

CAPELLER, W. O direito pelo avesso: análise do conceito de ressocialização. Temas IMESC: Soc. Dir. Saúde, São Paulo, v. 2, n. 2, p. 127-134, 1985. 

CARVALHO FILHO, L. F. A prisão. São Paulo: Publifolha, 2002.

ATENÇÃO: o texto do artigo na íntegra, juntamente com as referências completas, encontra-se no endereço Educação em Debate, Fortaleza, ano 43, nº 84 - jan./abr. 2021, file:///C:/Users/Professor/Downloads/1121-2119-1-SM%20(1).pdf, ou pelo número DOI: https://dx.doi.org/10.24882/eemd.v43i84.1121

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